Pular para o conteúdo

Os papéis femininos da mulher negra na falsa democracia racial brasileira A mulata, a doméstica e a mãe preta.

Os papéis femininos da mulher negra na falsa democracia racial brasileira
A mulata, a doméstica e a mãe preta.

PARTE I –A MULATA

Nomear algo ou alguém, por substantivo ou por adjetivo – os quais sabemos que são carregados de significado – serve para comunicar ao interlocutor as características intrínsecas e extrínsecas do objeto ou da pessoa. 

A mídia, a literatura, as marchinhas de carnaval e o comportamento social reproduziram, por longos anos, o conceito de mulata como a mulher negra sensual, musa do carnaval, desejável por seu corpo, “da cor do pecado”, feita para o sexo casual.

Ângela Davis, em “Mulheres, Raça e Classe”, aponta como a cultura, muitas vezes, valida o abuso sexual de mulheres negras:

“(…) Essas agressões têm sido ideologicamente sancionadas por políticos, intelectuais e jornalistas, bem como por literatos que com frequência retratam as mulheres negras como promíscuas e imorais”.

Nossos “clássicos” naturalizam na mente do jovem leitor todo o sexismo e racismo do estereótipo da nomenclatura mulata. Enquanto a mulher branca se aproxima do divino e, portanto, merecedora de devoção e respeito, a mulher negra, principalmente anão retinta,provém do mundano, do instintivo, do carnal. Vejamos José de Alencar em “O Guarani”:

“Vendo aquela menina loura, tão graciosa e gentil, o pensamento elevava-se naturalmente ao céu, despia-se do invólucro material e lembrava-se dos anjinhos de Deus. 

Admirando aquela moça morena, lânguida e voluptuosa, o espírito apegava- se à terra; esquecia o anjo pela mulher; em vez do paraíso, lembrava-se de algum retiro encantador, onde a vida fosse um breve sonho”. 

Ratificando e normalizando a opressão sofrida pela mulher negra, foliões de todo o país entoavam:

“O teu cabelo não nega mulata
Porque és mulata na cor
Mas como a cor não pega mulata
Mulata quero seu amor”

O corpo da mulher preta era desejável tão somente porque se relacionar com uma negra não te fará um negro. Além da clara aversão à cor preta, podemos extrair a ideia de que seria um relacionamento fugidio, que não traria descendência nem convivência prolongada. Amor, na composição infeliz, não passa de eufemismo para sexo em seu prisma mais vulgar. E que se registre que não há aqui uma crítica à liberdade sexual, mas sim, a amputar a mulher negra de pretensões de constituição familiar ede sentimentos românticos. 

Como se não fosse ruim o suficiente, não poderíamos deixar de ladoa etimologia de mulata: originária do latim mulus, a palavra mulo, da qual a palavra mulata provém, nomeia o animal estéril, fruto do cruzamento de um cavalo com uma jumenta, ou de um jumento com uma égua. 

Não foi uma escolha aleatória de palavras. Pretendeu-se difundir a ideia de que os relacionamentos inter-raciais comprometeriam o futuro da humanidade. Quiçá, extinguiriam a raça humana. A eugenia, pseudociência muito difundida e aclamada no século XIX, fomentou o conceito de raças superiores, servindo de base até mesmo para a ideologia nazista. 

O raciocínio – infelizmente não isolado – do Conde de Gobineau, de que a miscigenação provocaria o fim das civilizações pode ser bem apreendido em sua análise do povo brasileiro quando aqui esteve:

“A grande maioria da população brasileira é mestiça e resulta de mesclagens contraídas entre os índios, os negros e um pequeno número de portugueses. Todos os países da América (…) hoje mostram, incontestavelmente, que os mulatos de distintos matizes não se reproduzem além de um número limitado de gerações.”

A vida e a biologia, não subordinadas a delírios preconceituosos,seguiu normalmente, mas o racismo é criativo e ativo. 

Muito se fala da tentativa de embranquecimento da população brasileira, mas o mais chocante e menos comentado é a tentativa de efetivar a falsa esterilidade.

Investigada na CPI das laqueaduras (1993), a esterilização em massa de brasileiras – sete mil e quinhentas mulheres em idade reprodutiva incapazes de conceber, segundo o IBGE – aponta que:

“É sintomático constatar que o maior percentual de esterilizadas encontra-se exatamente no Estados das regiões que concentram os maiores índices de miséria e pobreza do nosso país, e onde a composição populacional aponta para uma maioria negra, como por exemplo o Nordeste e o Centro-Oeste. Por outro lado, em estados de maioria branca, como por exemplo o Rio Grande do Sul, o índice de mulheres esterilizadas fica abaixo da média nacional” . 

Podemos seguramente afirmar que através da linguagem transmitimos valores e ideias. Chamar uma mulher negra(ou mestiça) de mulata é marcá-la em um espaço social indesejável e inferior.

Para Lélia Gonzalez, cuja leitura é indispensável para o feminismo negro brasileiro, esse papel social imposto às descendentes de brancos com negras se origina no papel exercido pela mucama na Casa Grande. 

Em “Racismo e Sexismo na Cultura Brasileira”, Lélia cita June E. Hahner para explicar a relação entre mucama e mulata:

“… a escrava de cor criou para a mulher branca das casas grandes e das menores, condições de vida amena, fácil e na maior parte das vezes ociosa. Cozinhava, lavava, passava a ferro, esfregava de joelhos o chão das salas e dos quartos, cuidava dos filhos da senhora e satisfazia as exigências do senhor. Tinha seus próprios filhos, o dever e a fatal solidariedade de amparar seu companheiro, de sofrer com os outros escravos da senzala e do eito e de submeter-se aos castigos corporais que lhe eram) pessoalmente, destinados. (…) O amo para a escrava (…) tinha aspectos de verdadeiro pesadelo. As incursões desaforadas e aviltantes do senhor, filhos e parentes pelas senzalas, a desfaçatez dos padres a quem as Ordenações Filipinas, com seus castigos pecuniários e degredo para a África, não intimidavam nem os fazia desistir dos concubinatos e mancebias com as escravas”.

Lélia cita ainda Heleietth Saffioti, que explica que as interações sexuais entre senhores e escravas, ainda que desprovidas de amor romântico, constituíam uma interação social entre esses gruposque desarranjava a ordem social estabelecida, ao passo que não só homens negros e brancos disputavam as negras, como também as negras e brancas disputavam a atenção do homem branco.

E com essas referências, Lélia Gonzalez conclui que “pelo que os dois textos dizem, constatamos o engendramento da mulata e da doméstica se fez a partir da figura da mucama (…). E o momento privilegiado em que sua presença se torna manifesta é justamente o da exaltação mítica da mulata nesse entre parêntese que é o carnaval”.

A partir de 2017 alguns blocos de carnaval do Rio de Janeiro baniram marchinhas preconceituosas como a supramencionada “O teu cabelo não nega, mulata” justamente pelo significado pejorativo e pelo preconceito que o termo carrega. 

É fundamental refletirmos na origem, no conteúdo e nas consequências desses estereótipos, dado que a desumanização da mulher negra a torna mais propensa a ser vítima de todo tipo de violência, como sintetiza Luiza Barros:

“O racismo e o sexismo influenciaram as relações que determinaram a sociedade brasileira no seu momento fundador. Isso está no DNA de nossa sociedade, é estruturante. E hoje, mesmo considerando tudo o que já mudou em relação ao que consideramos violência, não há como discutir violência contra as mulheres sem discutir racismo e sexismo no Brasil.” (Luiza Bairros, socióloga e ex-ministra da Secretaria de Política de Promoção da Igualdade Racial”).

Portanto, a conclusão natural e racional é de que não é divertido, nem, tampouco, elogioso chamar uma mulher de mulata, e em uma sociedade que se pretende ser civilizada, não há espaço para esse tipo de tratamento discriminatório.

Por fim, mas não menos importante, que fique claro que não se pretende a censura nem o apagamento das obras de cunho racista, mas sim, a clara convicção de que pertencem a um passado histórico do qual não devemos nem nos orgulhar, nem continuar reproduzindo.

REFERÊNCIAS:

Boletim Informativo do Grupo de Trabalho de Igualdade Racial – MPSP nº 4 | São Paulo, 14 de outubro de 2015. Disponível em:
http://www.mpsp.mp.br 

Racismo e sexismo na cultura brasileira. Disponível em:
https://edisciplinas.usp.br 

“Francês previa fim do Brasil”. Disponível em:
https://www1.folha.uol.com.br 

A extinção dos brasileiros segundo o conde Gobineau. Ricardo Alexandre Santos de Souza. Revista Brasileira de História da Ciência, Rio de Janeiro, v. 6, n. 1, p. 21-34, jan | jun 2013. Disponível em:
https://www.sbhc.org.br 

Relatório final da CPMI para investigar a incidência de esterilização em massa de mulheres no Brasil. Disponível em:
https://www2.senado.leg.br 

DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. Tradução Heci Regina Candiani. São Paulo: Boitempo, 2016.

Sobre as autoras:

Ivani Martins Gama Duarte é advogada. Membro integrante da Comissão de Igualdade Racial da 116ª Subseção Jabaquara-Saúde da OAB/SP — São Paulo; Pós graduanda em Direito do Trabalho pela PUC.

Yhannath Hilda Dias Vargas Silva é Advogada, Presidente da Comissão de Igualdade Racial da 116ª Subseção Jabaquara-Saúde da OAB/SP da 116.a Subseção Jabaquara-Saúde da OAB/SP.

Sigam as redes sociais das Comissões envolvidas no projeto:

COMISSÃO DOS ACADÊMICOS DE DIREITO DA 116ª SUBSEÇÃO JABAQUARA-SAÚDE DA OAB/SP.

Facebook: https://www.facebook.com/acadoabjaba/?tn-str=k*F

Youtube: https://www.youtube.com/channel/UCxXhTrbYFTOuQpr6Rbdnm2g

Instagram: https://www.instagram.com/comissaoacad.oab/?hl=pt-br

COMISSÃO DE IGUALDADE RACIAL DA 116ª SUBSEÇÃO JABAQUARA-SAÚDE DA OAB/SP.

Facebook: https://www.facebook.com/oabjabracial 

Instagram: https://www.instagram.com/igualdade.racial.jabaquara_/?igshid=d8dwb9z8tkr6

[bookly-form]