As Fragilidades do tipo penal de perigo de Contágio de moléstia grave no Código Penal em meio a Pandemia
AS FRAGILIDADES DO TIPO PENAL DE PERIGO DE CONTÁGIO DE MOLÉSTIA GRAVE NO CÓDIGO PENAL EM MEIO A PANDEMIA
THE FRAGILITIES OF THE CRIMINAL TYPE OF SERIOUS MOLESTY CONTAMINATON DANGER IN THE CRIMINAL CODE IN THE MIDDLE OF THE PANDEMIC
Tulio Emer Damasceno
QUALIFICAÇÃO DO AUTOR:
Tulio Emer Damasceno
Advogado Especialista em Direito Penal
tulioemer@adv.oabsp.org.br
ESCOLARIDADE:
Instituição Toledo de Ensino de Bauru/SP, Direito, conclusão em 2014; Pós-graduado lato sensu em Direito Penal – Damásio Educacional, Bauru/SP, conclusão em abril de 2019.
TRABALHOS PUBLICADOS:
DROGAS PARA CONSUMO E TRÁFICO DE DROGAS DA LEI DOS ENTORPECENTES NA VISÃO DAS JURISPRUDÊNCIAS DO STF E DO STJ – Revista Científica da Escola Superior de Advocacia – IV Congresso de Atualização Jurídica – Ed. 32, p. 310.
CRIMES CONTRA A HONRA NO ÂMBITO DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA – Revista Científica da Escola Superior de Advocacia: Direito das Mulheres – Ed. 34, vol. 2, p. 192.
RESUMO
O presente trabalho visa examinar os delitos em tese relacionados ao covid-19, especificamente focando nas fragilidades do crime de Perigo de Contágio de Moléstia Grave, haja vista que em meio a pandemia há condutas que ferem a saúde de particulares que simplesmente não são punidas por este tipo penal e por nenhum dos demais. Condutas estas que, conforme veremos, estão mais presentes no nosso dia a dia do que se pode imaginar e que não seriam passiveis de punição criminal pela legislação pátria atual. No mesmo contexto, também será abordada no presente trabalho a questão das penas que deveriam ser aplicadas caso as condutas hoje não criminalizadas passassem a ter um tipo penal a mercê do que se espera diante do cenário do covid-19 e do que se espera por justiça. Para tanto, trouxemos no presente trabalho todos os quatro tipos penais relacionados ao covid-19 com informações e ensinamentos de outros doutrinadores.
Palavras-chave: contágio – moléstia – fragilidades.
ABSTRACT
The present work aims to examine the alleged crimes related to the covid-19, specifically focussing on the weaknesses of the Serious Contagion Danger crime, given that, in the midst of the pandemic, there are conductas that harm the health of individuals that are simply not punished for this criminal type and for of the others. These conducts that, as we will see, are more present in our daily lives than we can imagine and that would not be liable to criminal punishment by the current national legislation. In the same context, the question of the penalties that should be aplied if the conduct that is not criminalizes today would have a criminal type at the mercy of what is expected before the scenario of covid-19 and what is expected for justice will also be addressed in this work. To this end, we bring in the present work all four criminal types related to covid-19 with information and teachings from other doctrinators.
Keywords: contagion – diesease – weaknesses.
INTRODUÇÃO
A pandemia causada pela origem e expansão do covid-19 e que tem se alastrado no Brasil desde o início do ano causou vários impactos no ordenamento jurídico pátrio. O descumprimento do isolamento social por parte de infectados pela doença e a quantidade superior a de 34.000 mortes em menos de 4 meses desde a confirmação do primeiro caso da doença no Brasil têm gerado dúvida e insegurança para a coletividade com relação a possíveis punições jurídicas aos infratores, abrindo, assim, caminho para várias discussões em relação não só à impunidade quanto também à possível fragilidade normativa criminalizadora para aqueles que transmitem a doença para terceiro.
A lei pátria contempla quatro crimes previstos para tanto, sendo todos constantes no nosso Código Penal, mas mesmo depois de 4 meses da chegada e grande propagação da doença, muito raramente vemos pessoas sendo responsabilizadas criminalmente por estes, motivo pelo qual indaga-se se, mesmo com quatro delitos, são punidas todas as condutas que se vê passíveis se serem praticadas.
A partir daí, nos deparamos com o crime de Perigo de Contágio de Moléstia Grave com redação extremamente curta comparada ao crime de Epidemia. O primeiro tratando de atos de execução de contágio a particular, enquanto que o segundo trata da efetiva transmissão da doença para um grande número de pessoas. A partir daí surgem dúvidas: Por que não vemos ninguém preso ou condenado por transmitir doença grave para outro? Existe um dispositivo que criminalizador para tanto? Quais são as condutas passíveis de condenação na lei brasileira relacionadas ao covid-19?
Para podermos responder as estas perguntas com relação a possíveis falhas legislativas para efeitos de condenação e justiça, trazemos aqui no presente trabalho uma análise de todos os tipos penais passíveis de condenação em meio a pandemia, bem como uma análise comparativa das suas penas previstas em seus respectivos dispositivos.
1. DOS CRIMES PASSÍVEIS DE TRANSMISSÃO DE MOLÉSTIA NA LEI PÁTRIA
Como já adiantamos no presente trabalho, são quatro os crimes previstos no nosso ordenamento jurídico relacionados a pandemia do covid-19, isto nas conformidades dos ensinamentos dos professores Rover e Vital, vejamos:
Em tese, são quatro os crimes possíveis relacionados à Covid-19 listados no Código Penal: Praticar, com o fim de transmitir a outrem moléstia grave de que está contaminado, ato capaz de produzir o contágio (artigo 131); expor a vida ou a saúde de outrem a perigo direto e iminente (artigo 132); causar epidemia, mediante a propagação de germes patogênicos (artigo 267); e infringir determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa (artigo 268).1
1.1 Crime de Perigo de Contágio de Moléstia Grave
Este crime está previsto no capítulo da Periclitação da Vida e da Saúde, no artigo 131 do Código Penal, dispositivo o qual prevê ser crime “praticar, com o fim de transmitir a outrem moléstia grave de que está contaminado, ato capaz de produzir o contágio2”, com pena de reclusão de um a quatro anos e multa.
Ao analisarmos o presente tipo penal, nos deparamos com a expressão “com o fim de transmitir”, o que faz com que o crime recaia apenas em dolo direto, conforme os ensinamentos dos professores Galvão e Maranhão a seguir:
Em primeiro lugar, embora ainda seja incipiente a produção científica sobre o tema, não nos parece haver óbice para se enquadrar Covid-19 como “moléstia grave’’, diante de seu alto índice de contágio e da acentuada taxa de mortalidade — especialmente em pacientes debilitados por doença preexistente ou pela idade. A configuração do tipo penal exige ainda que o agente não apenas saiba que está contaminado, mas que pratique ato efetivamente capaz de produzir contágio com o especial fim de contaminar outrem. Contudo, diante da previsão de especial fim de agir, só se pune por conduta praticada com dolo direto [1].3
Em outras palavras o texto legal trouxe uma previsão direta e concreta com relação ao elemento subjetivo do crime ao adotar a expressão “com o fim de”, ou seja, o legislador indicou claramente que, para a configuração do crime, deve estar presente o elemento vontade, isto é, no caso deste delito é necessário que o infrator deseje
transmitir a doença pra outrem, recaindo tão somente quando estiver presente o chamado dolo direto, ou seja, não há punição quando o infrator age por dolo eventual, tão pouco pune caso o infrator recaia em culpa como, por exemplo, quando o infrator
1 ROVER, Tadeu; VITAL, Danilo. A APLICAÇÃO DO DIREITO PENAL NA PANDEMIA É TÊNUA E INEFICIENTE. Conjur, 2020. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2020-abr-11/aplicacao-direito-penal-pandemia-tenue-ineficiente>. Acesso em 07 jun. 2020.
2 BRASIL, Decreto-Lei 2.848, de 07 de dezembro de 1940. Código Penal. Diário Oficial da União.
3 GALVÃO, André; MARANHÃO, Felipe. A APLICAÇÃO DO DIREITO PENAL CONTRA DELITOS QUE FAVOREÇAM A EPIDEMIA. Conjur, 2020. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2020-abr-10/opiniao-aplicacao-direito-penal-delitos favorecam-epidemia> Acesso em 07 jun. 2020. 20202020pidemia>cam-epidemia>. Acesso em 07 jun. 2020.
esquecer a máscara de proteção e executar atos de contágio. Também não há qualquer tipo de previsão punitiva do eventual efetivo contágio a terceiro, vez que o texto legal pune apenas a execução do ato capaz de contaminar, ignorando o possível contágio.
1.2 Crime de Perigo para a Vida ou Saúde de Outrem
Já este crime está previsto em sequência do primeiro, no artigo 132 do nosso Código Penal, prevendo seu tipo que configura crime “expor a vida ou a saúde de outrem a perigo direto e iminente”4, punindo o infrator com pena de detenção de três meses a um ano quando não constitui crime mais gravo, aumentando-se a pena de um sexto a um terço “se a exposição da vida ou da saúde de outrem a perigo decorre do transporte de pessoas para a prestação de serviços em estabelecimentos de qualquer natureza, em desacordo com as normas legais5”. Com relação ao elemento subjetivo deste tipo penal deste crime, o professor Gonçalez nos ensina:
O tipo penal do artigo 132 exige dolo direto ou eventual, com a livre e consciente vontade de expor a vida ou a saúde de outrem ao contágio, ou então, que ao menos com sua conduta assuma o risco de produzir este resultado mesmo que não o desejando. Admitindo-se a tentativa.6
Notamos que este crime, não indicou com requisito necessário em sua redação o elemento vontade, ou seja, mesmo sendo ele menos grave que o primeiro, é passível de aplicação tanto quando o infrator age incorrendo em dolo direto quanto em dolo eventual. Por falta de previsão legal, este crime não possui qualquer modalidade de crime culposa.
1.3 Crime de Epidemia
Com relação ao crime de Epidemia, este tem sua redação junto ao capítulo dos Crimes Contra a Saúde Pública, no artigo 267 do Código Penal, onde prevê que responderá pelo crime aquele que “causar epidemia, mediante a propagação de germes patogênicos”7, com pena de reclusão de dez a quinze anos, sendo a pena dobrada em
4 BRASIL, Decreto-Lei 2.848, de 07 de dezembro de 1940. Código Penal. Diário Oficial da União.
5 BRASIL, Decreto-Lei 2.848, de 07 de dezembro de 1940. Código Penal. Diário Oficial da União.
6 GONÇALEZ, Sidney Duran. O CRIME DE PERIGO À VIDA OU À SAÚDE EM TEMPOS DE CORONAVÍRUS. Conjur, 2020. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2020-abr-06/sociedades-risco-crime-perigo-vida-ou-saude-tempos-coronavirus>. Acesso em 07 jun. 2020.
7 BRASIL, Decreto-Lei 2.848, de 07 de dezembro de 1940. Código Penal. Diário Oficial da União. caso de morte, e reduzida para um ou dois anos de detenção em caso de culpa sem o resultado morte e para dois ou quatro anos em caso de culpa com morte. Para a tipificação do fato é necessário que os germes patogênicos disseminados pelo agente acometam de doença infecciosa um número considerável de pessoas, não sendo considerada epidemia as doenças infecciosas que atinjam uma ou outra pessoa, ou que atinjam plantas ou animais.
A mesma doutrinadora Cruz, em sua obra, enfatiza que “O delito consuma-se com a ocorrência de epidemia, ou seja, com o surgimento de inúmeros casos de pessoas acometidas com a doença causada pelos germes patogênicos.”
Vejamos que este crime, sendo nitidamente o crime mais grave em discussão no presente trabalho, não só pune o efetivo contágio como também não prevê como requisito necessário para sua configuração o elemento vontade, razão pela qual é possível sua aplicação quando o infrator propaga a moléstia para várias pessoas sem a intenção da propagação, mas apenas assumindo os riscos do contágio, ou seja, pode recair tanto para o chamado dolo eventual, quanto para o dolo direto e culpa.
Por nos ensina a professora Cruz: “O delito consuma-se com a ocorrência de epidemia, ou seja, com o surgimento de inúmeros casos de pessoas acometidas com a doença causada pelos germes patogênicos.”10 Ou seja, não existe o crime quando o infrator contaminar apenas um particular, sendo que, neste caso, estando presente o elemento vontade quanto a contaminação, responderá o infrator contaminado pelo crime de Perigo de Contágio de Moléstia Grave do artigo 131 do Código Penal, mas ignorar se-á o efetivo contágio.
1.4 Crime de Infração de Medida Sanitária Preventiva
Por fim o último crime do ordenamento jurídico pátrio a ser analisado no presente trabalho. Previsto no artigo 268 do Código Penal, este crime será imputado àquele que “Infringir determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou
8 CRUZ, Delizaine. DOS CRIMES CONTRA A SAÚDE PÚBLICA – ESPÉCIES DOS CRIMES CONTRA A INCOLUMIDADE PÚBLICA. Jusbrasil, 2016. Disponível em: <https://delizaine.jusbrasil.com.br/artigos/359235915/dos-crimes-contra-a-saude publica-especies-dos-crimes-contra-a-incolumidade-publica>. Acesso em 07 jun. 2020.
9 CRUZ, Delizaine. DOS CRIMES CONTRA A SAÚDE PÚBLICA – ESPÉCIES DOS CRIMES CONTRA A INCOLUMIDADE PÚBLICA. Jusbrasil, 2016. Disponível em: <https://delizaine.jusbrasil.com.br/artigos/359235915/dos-crimes-contra-a-saude publica-especies-dos-crimes-contra-a-incolumidade-publica>. Acesso em 07 jun. 2020.
10 CRUZ, Delizaine. DOS CRIMES CONTRA A SAÚDE PÚBLICA – ESPÉCIES DOS CRIMES CONTRA A INCOLUMIDADE PÚBLICA. Jusbrasil, 2016. Disponível em: <https://delizaine.jusbrasil.com.br/artigos/359235915/dos-crimes-contra-a-saude publica-especies-dos-crimes-contra-a-incolumidade-publica>. Acesso em 07 jun. 2020.
propagação de doença contagiosa”11, punindo-se o ato com pena de detenção de um mês a um ano e multa, aumentando-se a pena em um terço “se o agente é funcionário da saúde pública ou exerce a profissão de médico, farmacêutico, dentista ou enfermeiro”12.
Nota-se que este crime, diferente dos anteriores, apesar de proteger uma medida preventiva estatal, não pune diretamente quem expõe terceiros a perigo de contágio, mas que meramente desrespeitaram a determinação do poder público que tinha a intenção de proteger a saúde da coletividade. Exemplificando, imaginemos que o poder público determinou a medida lockdown e um terceiro sai de sua residência para ir até a praça próxima a sua residência. Mesmo que esse terceiro tenha mantido distância segura das demais pessoas, ele estaria incorrendo neste crime.
Observamos que o presente delito também não possui como requisito o elemento vontade, podendo ser aplicado tanto no dolo direto quanto no dolo eventual, porém, por falta de previsão legal, não há a modalidade culposa do crime.
2. DA FALTA DE ELEMENTOS SUBJETIVOS NO CRIME DE PERIGO DE TRANSMISSÃO DE MOLÉSTIA GRAVE
Conforme pudemos observar nos tópicos anteriores, dos quatro crimes relacionados a pandemia do covid-19 já estudados por nós, o único crime que não prevê a figura do dolo eventual é logo o primeiro, o crime de Perigo de Contágio de Moléstia Grave do artigo 131, crime este que também não prevê a figura da culpa.
O interessante é que, conforme pudemos ver, o legislador previu a figura do dolo eventual tanto no crime menos gravoso, qual seja o crime de Perigo para a Vida ou Saúde de outrem do artigo 132, quanto no mais gravoso, qual seja crime de Epidemia do artigo 267, lembrando que o primeiro pune a exposição de perigo sem o efetivo contágio da moléstia, quanto que o segundo pune a contaminação de um número considerado de pessoas, mas não previu a mesma figura no crime de Perigo de Contágio de Moléstia Grave do artigo 131, crime intermediário entre ambos caso se fale em gravidade.
Em outras palavras, pela legislação atual, a título de exemplificação, a pessoa que, embora saiba que está contaminada pelo covid-19, vai para um bar com a intenção única de ver um amigo, pratique atos de contágio da mesma sem que haja a presente pretensão não responderá pelo crime. Nesta seara, caso fossemos falar em criminalizar o
11 BRASIL, Decreto-Lei 2.848, de 07 de dezembro de 1940. Código Penal. Diário Oficial da União.
12 BRASIL, Decreto-Lei 2.848, de 07 de dezembro de 1940. Código Penal. Diário Oficial da União.
fato do infrator executar os atos capazes de transmitir a doença mesmo sem o elemento vontade, não seria somente possível aferir a figura do dolo eventual, mas também a da chamada culpa consciente.
Sabemos que a única diferença entre esses dois institutos é que no primeiro, ao prever o possível resultado e realizar o ato de risco, o agente aceita produzi-lo, enquanto que, pela culpa consciente, também há a previsão do resultado e a execução do ato de risco, porém não há a aceitação do resultado, ou seja, o infrator acredita veementemente que sua atitude não acarretará no resultado previsto.
Para tanto, caso existisse dispositivo legal que criminalizasse a execução de ato capaz de transmitir moléstia grave sem necessariamente o elemento vontade, caracterizar-se-á a figura do dolo eventual quando o infrator, durante os atos executórios, mostrar-se não se importar se irá ou não contaminar um terceiro, enquanto que a culpa se caracterizaria mediante imprudência, negligência ou imperícia.
Fato é que para responsabilizar um infrator pelo crime do artigo 131, a tarefa é de extrema dificuldade, vez que é necessário provar que houve o elemento vontade de contaminar o terceiro, sendo que, sem essa prova, o infrator recairá às penas do artigo 132 por falta de previsão legal para tanto, deixando-se de lado a condenação pelo efetivo contágio e punindo-se apenas pela exposição a perigo de saúde ou de vida com pena inferior a do tipo penal do artigo 131.
3. DA NÃO CRIMINALIZAÇÃO DO CONTÁGIO DE PARTICULAR
Outro fator que pudemos observar é que o crime de Perigo de Contágio de Moléstia Grave condena apenas a execução dos atos capazes de transmitir a enfermidade grave, mas tão somente isto. O legislador não se preocupou em criminalizar a consumação do contágio, se restringindo apenas ao perigo de lesão, deixando-se de lado a efetivação da lesão do bem jurídico tutelado.
Como vimos, apesar de haver o crime de Epidemia, este somente é aplicado quando o mesmo infrator contaminado propaga a doença para um número considerado de pessoas. Desta forma, vemos que nosso ordenamento jurídico não possui uma norma que incriminalize a efetiva contaminação de moléstia grave a um particular.
4. DAS PENAS
Outro ponto que merece ser observado é com relação as penas dos crimes relacionados ao covid-19 no nosso Código Penal, fazendo um comparativo entre as mesmas até mesmo para chegarmos a uma conclusão para as penas dos tipos penais que possivelmente seriam criados com os elementos subjetivos ausentes do crime de Perigo de Contágio de Moléstia Grave do artigo 131 do Código Penal.
Chamamos a atenção no presente tópico para diferença entre a pena de Perigo de Contágio de Moléstia Grave do artigo 131 com a pena do crime de Epidemia do artigo 267, sendo a pena do primeiro de reclusão de 1 a 4 anos, e a pena do segundo de reclusão de 10 a 15 anos sem o resultado morte, obedecendo a proporcionalidade entre o ato capaz de contaminar terceiro e a contaminação de numerosas pessoas.
Caso fosse criado o tipo penal da execução de ato capaz de transmitir moléstia grave a outrem sem necessariamente haver a vontade da transmissão, mas assumindo seus riscos, vemos que se caracterizaria o dolo eventual, consequentemente suas penas seriam equiparadas as penas do crime por dolo direto em razão de assim prever nosso ordenamento jurídico, porém reduzir-se-á a pena em caso de culpa.
Em outras palavras, temos a pena de reclusão de 10 a 15 anos do crime de Epidemia como sendo a maior das penas dos crimes do nosso Código Penal relacionados ao covid-19; como segunda maior pena, temos a do crime de Perigo de Contágio de Molésia Grave do artigo 131, já com pena de reclusão de 1 a 4 anos, crime este que, como vimos, pune apenas o ato capaz de contágio, mas não o efetivo contágio. Assim sendo, para se aferir pena em caso de efetivo contágio, a pena deverá obedecer o princípio da proporcionalidade das penas, analisando-se o aspecto da gravidade do ato da efetiva transmissão de moléstia grave para outrem. Neste sentido, o professor Aguiar nos ensina que “quanto maior for a intervenção penal em direitos fundamentais dos afetados, maior deverá ser a efetiva proteção do bem jurídico por ela almejada.”13
Assim, em qualquer das hipóteses acima elencadas, as penas cominadas devem respeitar a proporcionalidade não só dos fatos, como também da intervenção penal em direitos fundamentais tutelados que seriam atingidos.
13 AGUIAR, Leonardo. PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE EM MATÉRIA PENAL. Jusbrasil, 2016. Disponível em: <https://leonardoaaaguiar.jusbrasil.com.br/artigos/333125116/principio-da-proporcionalidade-em-materia-penal>. Acesso em 07 jun. 2020.
5. CONCLUSÕES
O presente trabalho nos trouxe a possibilidade não só de estudarmos quais são os crimes relacionados ao covid-19 no ordenamento jurídico pátrio, mas também de refletirmos a respeito de suas fragilidades.
Estudando minuciosamente cada um dos crimes elencados, concluímos que houve uma possível desatenção do legislador que, ao redigir o crime de Perigo de Contágio de Moléstia Grave, tenha aferido apenas a responsabilidade por dolo direto devido a expressão “com o fim de”, deixando de lado as figuras do dolo eventual e da culpa.
Concluímos também que caso fossemos criar um dispositivo criminalizador quanto ao efetivo contágio de moléstia grave, esta deveria ser demasiadamente superior a pena aferida neste dispositivo em razão da consumação da lesão do bem jurídico tutelado, sendo mais grave que simplesmente colocá-lo em perigo. O bem jurídico tutelado seria a saúde de um particular, razão pela qual o tipo penal deve estar inserido, se não no próprio artigo 131, no mínimo no capítulo da Periclitação da Vida e da Saúde, e não no capítulo dos Crimes Contra a Saúde Pública onde se encontra o crime de Epidemia. Derradeiramente sabemos não é o mais fácil dos desafios condenar um infrator do crime de Epidemia, vez que é muito difícil descobrir, em meio a uma coletividade, quem foi o transmissor da moléstia para tantas pessoas, isso ainda levando se em consideração que o delito aceita as figuras do dolo eventual e da culpa, o que nos leva a crer que é muito mais difícil condenar alguém pelo crime de Perigo de Contágio de Moléstia Grave em razão da redação atual do Código Penal, pois, além de descobrir quem é o infrator, é necessário comprovar que o mesmo pretendeu a contaminação, sendo que, caso não comprovada tal vontade, poderá recair sobre o crime do artigo 132, com penas significantemente inferiores, ou até mesmo ficar impune em caso de culpa.
A inserção de condenação do crime do artigo 131 por dolo eventual ou culpa facilitará assegurar a aplicação da justiça, vez que, independentemente se houver o elemento vontade, estará o infrator sujeito as mesmas penas do dolo direto caso caracterize-se que no mínimo, o infrator aceitou os riscos de cometer o contágio, de modo que também se fará justiça ao condenar o infrator que transmitir a moléstia para terceiro agindo em imprudência, negligência ou imperícia.
Assim sendo, a correção das falhas não só diminuiria a desconfiança da coletividade na justiça como também deixaria a sociedade mais segura, vez que os transmissores da doença serão punidos de forma justa pelos seus atos e, com a lei mais adequada para o caso concreto, podemos afirmar que certamente, por mínimo que seja, haverá redução do contágio das doenças, vez que os infratores não só poderão de fato ter sua liberdade restringida como também refletirão a respeito antes de efetuar qualquer ato executório de transmissão de várias doenças, dentre estas o tão grave covid-19.
Por essas razões, se fossemos falar em corrigir os vícios legislativos aqui apontados, tornando a redação crime de Perigo de Contágio de Moléstia Grave proporcional a gravidade de sua lesão e proporcional também ao caso concreto atual, concluímos que o crime de Perigo de Contágio e de Moléstia Grave deve ser ganhar os seguinte parágrafos:
§1º. Estará sujeito (a) as penas deste crime quem praticar os atos executórios do caput deste artigo mesmo sem a finalidade da transmissão da moléstia grave, desde que assuma os riscos de produzir o contágio;
§2º. A pena será de detenção 5 meses a 1 ano caso em caso de culpa; §3º. As penas do delito deste artigo serão dobradas caso haja o efetivo contágio da moléstia grave em decorrência da prática descrita no caput.
Na nossa proposta, votamos na aplicação da mesma pena do dolo direto quando recair em dolo eventual, com diminuição da mesma para detenção de 5 meses a 1 ano quando recair em culpa e aplicação das penas em dobro no caso do efetivo contágio.
Todas essas penas sugeridas nos parecem punições mais justas e proporcionais de acordo com caso concreto, a evolução da sociedade e com as necessidades atuais, tanto pelo tipo penal quanto aos resultados do crime quando comparado as penas dos demais tipos penais pátrios relacionados ao covid-19.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AGUIAR, Leonardo. PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE EM MATÉRIA PENAL. Jusbrasil, 2016. Disponível em: <https://leonardoaaaguiar.jusbrasil.com.br/artigos/333125116/principio-da proporcionalidade-em-materia-penal >. Acesso em 07 jun. 2020.
BRASIL. Decreto-Lei 2.848, de 07 de dezembro de 1940. Código Penal. Diário Oficial da União, Rio de Janeiro, 31 dez. 1940.
CRUZ, Delizaine. DOS CRIMES CONTRA A SAÚDE PÚBLICA – ESPÉCIES DOS CRIMES CONTRA A INCOLUMIDADE PÚBLICA. Jusbrasil, 2016. Disponível em: <https://delizaine.jusbrasil.com.br/artigos/359235915/dos-crimes-contra-a-saude publica-especies-dos-crimes-contra-a-incolumidade-publica >. Acesso em 07 jun. 2020.
GALVÃO, André; MARANHÃO, Felipe. A APLICAÇÃO DO DIREITO PENAL CONTRA DELITOS QUE FAVOREÇAM A EPIDEMIA. Conjur, 2020. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2020-abr-10/opiniao-aplicacao-direito-penal-delitos favorecam-epidemia > Acesso em 07 jun. 2020.
GONÇALEZ, Sidney Duran. O CRIME DE PERIGO À VIDA OU À SAÚDE EM TEMPOS DE CORONAVÍRUS. Conjur, 2020. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2020-abr-06/sociedades-risco-crime-perigo-vida-ou-saude tempos-coronavirus >. Acesso em 07 jun. 2020.
G1. MINISTÉRIO DA SAÚDE APONTA 904 MORTES EM 24 HORAS; TOTAL DE MORTOS VAI A 35.930. 06 jun. 2020. Disponível em: <https://g1.globo.com/bemestar/coronavirus/noticia/2020/06/06/ministerio-da-saude divulga-balanco-deste-sabado-de-casos-e-mortes-por-covid-19-no-brasil.ghtml >. Acesso em 07 jun. 2020
ROVER, Tadeu; VITAL, Danilo. A APLICAÇÃO DO DIREITO PENAL NA PANDEMIA É TÊNUA E INEFICIENTE. Conjur, 2020. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2020-abr-11/aplicacao-direito-penal-pandemia-tenue ineficiente >. Acesso em 07 jun. 2020.