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A humildade como valor e vetor interpretativo no Direito Natural e no Direito Positivo

O renomado autor José Afonso da Silva, em sua conhecida obra “Comentário Contextual à Constituição” (2ª ed. São Paulo: Malheiros, 2007), ao tratar da questão dos valores humanos que foram alçados à Constituição Federal (e, portanto, transmutados na norma positivada), afirma que “os valores supremos, expressamente enunciados, são: os direitos sociais, os direitos individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça”.

É fácil perceber que existem outros valores que são tão fundamentais quanto os acima destacados, mas que, ou não chegam a ser incluídos dentro do arcabouço propriamente deôntico (no sentido da norma posta), ou simplesmente não são comentados pela Carta Magna. Nesse rol está o valor da humildade.

Poder-se-ia também tecer um texto sobre o valor do amor, mas na efetivação dos direitos sociais, a prática da solidariedade é elemento essencial à concretização de diversos ramos do próprio Direito, com ênfase ao Direito Previdenciário.

Assim, à guisa de desenvolvimento do tema ora proposto, encontramos na obra “Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem”, escrita por São Luís Maria Grignion de Montfort” (44ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014, p. 19), o seguinte sobre a Mãe de Jesus:

“Toda a sua vida permaneceu oculta; por isso o Espírito Santo e a Igreja a chamam Alma Mater – Mãe escondida e secreta. Tão profunda era a sua humildade, que, para ela, o atrativo mais poderoso, mais constante era esconder-se de si mesma e de toda criatura, para ser conhecida somente de Deus”.

No entanto, a própria Mãe de Jesus afirma, no Magnificat, que todas as gerações a proclamariam bem-aventurada, pois realizou nela maravilhas Aquele que é Poderoso e cujo Nome é Santo.

A virtude da humildade implica não apenas em modéstia, simplicidade ou desapego às vaidades, mas igualmente o reconhecimento da verdade onde quer que ela esteja.

Para os cristãos católicos, Maria é a maior de todas as criaturas e, mesmo assim, se fez humilde, assim como seu Filho, conhecido por ser Manso e Humilde de coração.

Para os seres humanos em geral, a humildade aponta, também, para a consciência do lugar de cada um, num aprendizado constante sobre aquilo que os outros podem nos ensinar, afastando o orgulho e a soberba de nossos corações.

O esconder-se de si mesma, de Maria, revela um caminho de sabedoria que deve ser por todos nós imitado, porque ninguém de nós está livre das insidiosas tentações do orgulho.

A discussão valorativa, que tangencia a humildade e sua aplicação prática, é capaz de indagar-nos a respeito do modo pelo qual nos inclinamos diante da criação legislativa e mesmo da interpretação legal. Estaríamos sempre abertos ao reconhecimento da verdade?

Para nós, quid est veritas é apenas uma pergunta clássica ou vem sendo usada por nós como uma desculpa para não investigarmos a fundo qualquer tipo de assunto?

Nesse passo, em brevíssimo resumo, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948, elenca o direito à vida, à liberdade, à segurança pessoal, à proibição da escravidão, proibição à tortura e tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes, ao reconhecimento de todo homem como pessoa, à igualdade, direito de receber dos tribunais remédio efetivo para os atos que violam os direitos fundamentais, proibição à prisão arbitrária, direito a uma audiência justa e imparcial, presunção de inocência, proteção da vida privada, honra e reputação, liberdade de locomoção, asilo em países estrangeiros, direito a uma nacionalidade, direito a contrair matrimônio e fundar uma família, onde a família é ressaltada na Declaração como núcleo fundamental e natural da sociedade, direito à propriedade privada, liberdade de pensamento, consciência e religião, liberdade de opinião e expressão, liberdade de reunião e associação, direito de tomar parte no governo, onde a vontade do povo deve ser a base da autoridade do governo, expressa em eleições legítimas, segurança social, direito ao trabalho com justa remuneração, direito ao repouso e lazer, direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e à sua família saúde e bem estar, com especial proteção à maternidade e à infância, direito à instrução para pleno desenvolvimento da personalidade humana, direito à participação livre da vida cultural, bem como à proteção dos interesses morais e materiais decorrentes de qualquer produção científica, literária ou artística, dentre outros.

Tanto a exegese quanto a hermenêutica que se debruçam sobre todos estes direitos fundamentais, que evocam alguns dos valores mais importantes e que possibilitam a vida em sociedade, deve ser pautada não por interesses políticos, partidários ou meramente ideológicos, mas sim, pela verdade e pelo senso de Justiça que somente a consciência do fator humildade é capaz de conferir aos atores destas categorias de intepretação jurídica.

Por isso, defendemos a tese de que a humildade é verdadeiro vetor que auxilia na interpretação tanto das questões de Direito Natural, quanto de Direito Positivo.

Na obra “A Definição Filosófica de pessoa humana” (Bauru-SP: Edusc, 1995), Battista Mondin esclarece que  a pessoa humana é um ser subsistente na ordem do espírito. Espírito que não é um acidente no homem e na mulher, mas a sua substância, e nesse sentido a principal tarefa da cultura – mormente a cultura jurídica – é construir um projeto de humanidade que seja adequado à dignidade da pessoa humana.

Somente por meio da coexistência das pessoas humanas é possível atingir a meta da realização pessoal e coletiva, pois cada pessoa é um universo que, ao comunicar-se, abre-se à elevação do próprio ser por intermédio da generosidade e da solidariedade. Sem a redescoberta do verdadeiro significado da humildade, não é possível haver durabilidade na solidariedade.

Portanto, muito poderia se falar sobre os valores ou a questão ético-moral que podem ser abordados pelo profissional atuante em todos os ramos do Direito, mas o princípio constitucional sempre está de braços dados com outros critérios axiológicos sem os quais a própria gênese da regra positivada não seria possível. Tais valores acompanham o profissional do Direito de forma especial, mas também toda a humanidade, antes da normatização, e durante sua aplicação e interpretação.

É preciso recordar tais questões. É o que humildemente sugerimos. Pois devemos ser humildes como a Alma Mater, mas, ao mesmo tempo, como ela, corajosos para mostrar sempre a verdade, em todas as situações, conforme o Espírito que vivifica. Pois é na perseguição da verdade e da justiça que está o caminho para a realização plena dos direitos humanos, para a pacificação e plenitude das relações sociais, e para o encontro do direito positivo com as razões de sua própria origem.

Dávio Antônio Prado Zarzana Júnior
Advogado e Presidente da Comissão de Direito Natural e das Relações Sociais da 116ª Subseção da OAB-SP.

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